O actual Vice-Primeiro-Ministro, Paulo Portas é, irrevogavelmente, o Rei das piruetas políticas. Ele é grandioso demais quer para o partido que lidera, quer para o País que "vice"-dirige. Sobre esta personagem política li um excelente artigo de opinião da jornalista Fernanda Câncio, que publicou no dia de ontem, no Diário de Notícias, sob o título "Um político que de irrevogável só mesmo a contradição" e que transcrevo, de seguida, na íntegra (1).
Em meia dúzia de pinceladas, Fernanda Câncio refresca-nos a memória sobre o sinuoso pensamento político deste homem que, espero eu, tenha atingido o cume da sua carreira política e daqui não vá mais longe.
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"Na semana em que o líder
centrista se estreia a presidir ao Conselho de Ministros, revisite o percurso
de quem jurava aos 30 nunca fazer política e aos 50 chega a
vice-primeiro-ministro.
Não foi na semana passada (Passos
veio de Manta Rota estragar a estreia) mas será nesta: Paulo Sacadura Cabral
Portas não chega ao fim do seu meio século de vida (faz 51 em setembro) sem
concretizar um sonho nada secreto: ser número um do Governo. Não é (ainda?) no
organograma oficial, mas se há quem o garanta já, atendendo às pastas que agora
acumula, primeiro-ministro de facto, inaugurar-se-á quinta-feira na direção do
Conselho de Ministros.
"Graças a Deus", dirá
talvez, como tanto gosta de repetir. E graça tem certamente: é olhar o seu
percurso. "Geneticamente anti-poder" aos 30, sem "nenhumas
ambições políticas" aos 28, candidato a deputado aos 32. Amigo, criador e
seguidor de Manuel Monteiro aos 31, derrotando-o (e desfazendo-o) na liderança
do partido aos 33, em 1998. Inimigo ajuramentado de Cavaco e dos seus governos
durante todo o tempo de O Independente, perguntando, em 1995, que raio iria
este fazer para Belém, garante agora que o apoiou sempre nas candidaturas a PR.
Antieuropeísta e antieuro nos anos 90, alertando para o perigo da Alemanha
unificada, é em 2013 vice-PM de um governo que segue à risca a cartilha Merkel.
Vigoroso denunciante do "bloco central dos interesses", das
"negociatas do poder" e do escândalo BPN, cede o MNE a Rui Machete,
ex-presidente do conselho consultivo da SLN. Candidato à Câmara de Lisboa em
2001, garantia nos cartazes "eu fico" (como vereador), para não
ficar. Antiausteridade até às eleições de 2011 (em entrevista ao DN, em 2009,
defendia baixar impostos - "o défice é importante, mas a economia ainda é
mais" - e em 2010 garantia "saber onde cortava" para poupar o
Estado social), autor, em 2012, de uma carta aos militantes do CDS em que
certificava não admitir outro agravamento fiscal, assinou o orçamento que em
2013 bateu o recorde da subida de impostos na democracia portuguesa; defensor
irredutível dos pensionistas em setembro de 2012, dez meses depois anuncia o
corte de 10% nas pensões da CGA. Liberal irreverente, individualista e
antipartidos aos 29, logra ser quem há mais tempo (13 anos) dirige um,
professando, no debate do Estado da Nação que se segue à revogada demissão
irrevogável: "Em caso de opção entre a razão pessoal e a de partido, deve
prevalecer a de partido."
Primórdios. Mas, se perguntarmos
se ele avisou, avisou. "Os políticos têm um código hipócrita, é preciso
descodificar o que dizem", garantia aos 29 anos o filho da economista (de
direita?) Helena Sacadura Cabral e do arquiteto (próximo do PS) Nuno Portas
(cujas pisadas profissionais teria querido seguir, não fosse o mal que se dava
com a matemática). Dirigia então O Independente e fazia do semanário fundado em
1988 com Esteves Cardoso e o mais tarde correligionário no PP Nobre Guedes
(amigo íntimo cuja demissão da vice-presidência do partido manterá em segredo
quase um ano, atestando da dificuldade nessa rutura pessoal e política) o
púlpito de onde esportulava a sua visão do que devia - e sobretudo do que não
devia - ser a direita portuguesa. Tinha começado cedo, de resto, essa missão
paralela à do irmão Miguel, militante do PCP e depois fundador do BE cuja
morte, em 2012, uniu no palco do Teatro São Luís, numa longa cerimónia
transmitida em direto, a nomenclatura do partido mais à esquerda no espectro
parlamentar e o chefe do mais à direita, num inusitado misto de liturgia da dor
e propaganda política.
Aos 13, ainda aluno do colégio
São João de Brito, inscrevia-se, por via da admiração até hoje proclamada ao
presidente-fundador Sá Carneiro, no PPD/PSD, cujo órgão oficial, Pelo
Socialismo (!), chegou a dirigir; aos 15 ia a tribunal por ter acusado Eanes,
Soares e Freitas de trair a pátria (em As três traições, publicado em 1978 no
Jornal Novo); aos 19, dois anos após a morte do fundador, saía do partido para,
afirmaria categoricamente durante 13 anos, nunca mais voltar à política -
partidária, bem entendido. "Se há uma coisa definitiva na minha vida e na
minha cabeça, uma delas é essa: gosto imenso de política mas nunca farei
política", certificava em 1991 numa entrevista na RTP2. "Os partidos
são uma maçada, e ser militante é uma maçada. Os quadros dos partidos são muito
medíocres e acham que aquela é a forma mais fácil de subir na vida. Os partidos
dispensam o mérito." Na mesma entrevista, esguio e jovem, tão jovem e
descontraído na camisa clara, gestos rápidos como o olhar e o verbo, os tiques
teatrais que hoje lhe conhecemos - a pose esforçada de estadista, a virilidade
imposta na voz, a rima nas frases ritmadas - tão longe ainda, arrumava o CDS
com desprezo: "Qualquer dia ninguém vai para lá." E definia-se, no
tom de enfant terrible bem nascido em que fazia questão (contra "a
democracia dos ignaros" que invetivava na sua coluna, "os homens sem
história", "bando posidónio" do cavaquismo, que viam "na
política uma espécie de promoção social" e consideravam "bem ter
nascido mal"), como "uma pessoa de direita meio liberal meio
conservador" elogiando em Salazar (no contraste com Cavaco, "um homem
ordinário" com quem a comparação, a seu ver, era injusta para o ditador) a
inteligência, a escrita e o "raffinement do cinismo". Dois anos
depois, no programa Raios e Coriscos, de Herman José, reiterava o nojo aos
políticos: "O poder é a pior coisa... Sou geneticamente contra o poder,
seja de quem for. No dia em que um amigo meu lá chegar, passo-me para a
oposição ou deixo de ser amigo dele."
Quase. No mesmo programa, Zita
Seabra, acabada de chegar ao PSD vinda do PCP, apontava o bluff: "Quem é
que tem mais poder, o Paulo como diretor do Independente ou o ministro do Mar
ou de outra coisa qualquer?" A resposta é um chuto para canto. Afinal,
faltam dois anos para que abandone o jornalismo (voltará a ser comentador
político, mas só na TV, de cada vez que "sai" da política ativa, em
1997 e entre 2005 e 2007) pela tal maçadora, medíocre, oportunista e salobra
"vida de partido", e por uma imparável - irrevogável? - caminhada
poder político acima. Aquela que o traz aqui, à semana de agosto de 2013 em
que, pela terceira vez membro de um Governo de coligação PSD/CDS, tem pela
primeira a sigla "PM" na descrição do cargo. Vistas daqui, as
palavras do jornalista, recentemente objeto de resenha no Expresso, são uma
espécie de outra vida - de tal modo que no registo parlamentar, em
"ocupação principal", apôs "jurista", categoria para a qual
o curso de Direito o habilita mas que nunca exerceu. Será mesmo dos únicos,
senão o único, ex-colunista notável que nunca deu ao prelo os seus escritos em
livro. Percebe-se: lê-lo e à sua acerada, quase sempre brutal, pluma não é só
um exercício de contemplação da ironia e de revisitação nostálgica (ah, o
quanto a vida nos muda). É sobretudo perguntarmo-nos o que não diria Portas
colunista do Portas político, que adjetivos ofertaria a sua brilhante crueldade
para tanta pirueta, cambalhota, dito por não dito, não dito por dito. E se,
como jurava há 20 anos que faria, cortou relações consigo ou logrou refinar o
cinismo até disso se poupar."
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(1) - Propositadamente aguardei um dia após a publicação do artigo para agora o respigar.
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